Reginald Joseph Mitchell pode ser considerado um dos personagens mais importantes e influentes da aviação no século XX. Suas criações estavam na linha de frente no processo de evolução da aviação, que, no final dos anos 20, rompia com a tradição clássica de construção de aeronaves. Seria através de um destes projetos, a série S de hidroaviões de competição que Mitchell ganharia fama internacional, culminando posteriormente com o projeto de sua carreira: o inconfundível Spitfire.
R.J. MITCHELL: CRIANDO UMA REPUTAÇÃO
O primeiro envolvimento de Mitchell com a aviação se deu em 1916, quando R.J. fora recrutado pela equipe de projetistas da Supermarine Aviation Works, à época, uma pequena empresa especializada na construção de protótipos e hidroaviões para a Corpo Aéreo Britânico.
No entanto, demoraria quatro anos até que Mitchell produzisse o primeiro design de sua autoria, chamado “Commercial Amphibian”. A aeronave era uma adaptação dos modelos Channel, fabricados pela própria Supermarine, que, originalmente, tinha fins militares de patrulha e reconhecimento anti-submarino.
Com o fim da guerra e excedentes do modelo, tais hidroaviões foram modificados para o padrão civil de ageiro, mas tiveram uma carreira curva, devido ao pouco conforto e baixo desempenho.
Em paralelo, a Supermarine observava outras possibilidades de mostrar sua marca para o mundo. Depois de perder para a Fairey uma concorrência do governo britânico para o desenvolvimento de um novo hidroavião civil de longa distância, a empresa foi obrigada a recorrer a meios alternativos – um dos mais interessantes seria a participação da equipe no Schneider Trophy.
O troféu era uma das competições internacionais mais importantes da época, acontecendo anualmente e reunindo alguns dos nomes mais poderosos da aviação. Tal disputa envolvia uma série de corridas para hidroaviões de alto-desempenho, apresentando um dos grandes desafios do campo aeronáutico.
A representação nestas provas era invejável, com nomes pesados do segmento de aerobarcos competindo regularmente, tais como Macchi, Savoia-Marchetti, Curtiss e Sopwith.
A primeira aparição da Supermarine nessas corridas aconteceu na edição de 1919, com o Supermarine Sealion I. Mitchell pouco participou do desenvolvimento da aeronave e não é de se surpreender que o Sealion não durasse nem uma volta na corrida.
Apesar do fracasso, a construtora de Southampton vira o bom retorno de imagem que tal prova causara, refletindo inclusive em um sensível aumento nas vendas do próprio “Commercial Amphibian” de Mitchell. Assim, em 1922, a Supermarine retornou a Schneider Trophy, agora com o modelo Sea Lion II, desenhado pelo próprio R.J.
A vitória na prova frente aos favoritos S.M. e Macchi elevara o até então desconhecido Mitchell em um dos nomes mais bem vistos do setor aeronáutico da época, com o projetista tendo participação primordial posteriormente no desenvolvimento dos Supermarine Seagull e o Southampton, dois projetos muito bem sucedidos da empresa nos anos 20.
Apesar do sucesso, Mitchell sabia que todos os seus designs até agora não apresentavam nada de radical. Para entrar na vanguarda do campo da aviação, ele sabia que era necessário inovar e, para isso, o projetista se virou novamente para o Schneider Trophy, para testar seu mais novo projeto: a família S de hidroaviões.
SCHNEIDER TROPHY: A CORRIDA PELO DESENVOLVIMENTO DA AVIAÇÃO
O Curtiss CR.III havia sido a grande atração da edição de 1923 do troféu. Apesar de ser um hidroavião, a máquina apresentava um desempenho superior a quase todas as aeronaves contemporâneas de sua época, chegando a velocidades acima dos 390 km/h.
Para Mitchell, que tinha como ambição participar do próximo evento de maneira competitiva, era necessária uma minuciosa análise do avião americano, que revelou a necessidade de um aprimoramento significativo da aerodinâmica das aeronaves Supermarine e a exigência de um motor extremamente potente.
Tomando como nota o projeto americano, Mitchell começou a desenvolver o hidroavião S.4, que estava preparado para participar do Schneider Trophy de 1925. A aeronave rompia completamente com as linhas dos modelos anteriores de Mitchell e da Supermarine, com um design limpo e elegante dando os primeiros contornos dos produtos que a companhia produziria nos anos seguintes.

Com um design monoplano de asa cantilever, a aeronave era impulsionada por um motor Napier Lion VII de 700 cv, uma propulsão imensa para uma aeronave da época. Segundo dados técnicos, o S.4 poderia chegar a mais de 380 km/h, bom o suficiente para levar a batalha as aeronaves americanas.
No entanto, o S.4 nunca pode provar o seu valor. Dias antes da prova, a aeronave se envolveu em um acidente na bahia de Baltimore (EUA), enquanto realizava treinamentos para a corrida. Chocando-se com a água depois de estolar em voo, o S.4 foi completamente destruído – o piloto, Henry Biard, saiu apenas com algumas lesões do desastre.
Apesar da perda total do único S.4 e dos custos relacionados ao acidente, Mitchell resolveu seguir em frente e desenvolver um modelo ainda mais aprimorado do esbelto hidroavião, que viria a ser conhecido como S.5.
Relevada a tempo para o Schneider Trophy de 1927, o S.5 era uma aeronave bem mais avançada que seu predecessor. Equipada com um motor Napier Lion VIIA de 900 cavalos, a aeronave apresentava uma velocidade máxima de quase 515 km/h.
Outros detalhes ainda mais revolucionários demonstravam que essa era a aeronave pela qual Mitchell esperava entrar definitivamente para a história da aviação: o S.5 era construído quase que inteiramente (a exceção as asas da aeronave) de ligas leves de metal, em especial, duralumínio, e quase todos os elementos estruturais da aeronave foram otimizados para a maior performance possível.
Talvez o ponto mais importante do S.5 tenha sido o uso extensivo de túneis de vento para o aprimoramento da aerodinâmica da aeronave, algo extremamente raro à época para empreitadas privadas, devido aos custos associados ao uso desta tecnologia.

No entanto, os três S.5 construídos se provaram máquinas espetaculares. Além da vitória na competição de 1927, um S.5 foi inscrito novamente na edição de 1929 do Schneider Trophy, terminando em terceiro lugar. A essa época, os S.5 já haviam dado lugar aos modelos definitivos de hidroaviões da Supermarine, a série S.6.
SUPERMARINE S.6 E S.6B: OS ANTEADOS DO SPITFIRE
O sucesso dos S.5 provou que R.J. Mitchell e a Supermarine estavam no caminho certo com relação ao desenvolvimento do melhor hidroavião de corridas do mundo, que seria representado pela série seguinte de modelos.
Apesar de grande participação da Real Força Aérea (RAF) no projeto, com a instituição se tornando uma grande entusiasta e patrocinadora dos projetos de Mitchell desde sua primeira vitória no Schneider Trophy em 1922, o desenvolvimento da próxima geração de hidroaviões da Supermarine demorou para conquistar os céus.
Devido a troca de fornecedores da propulsão da aeronave, com a Napier dando lugar a Rolls-Royce, todo o cronograma de testes de voo teve que ser remanejado. Tanto a Supermarine, que tinha sua imagem em jogo, quando a RAF, que tinha seu próprio prestígio na mesa, pressionaram a Rolls, no sentido de que o motor ficasse pronto a tempo da Schneider Trophy de 1929, esperada para ocorrer no mês de Setembro.
Em maio, o primeiro teste do motor Rolls-Royce R foi realizado, e, apesar do bom funcionamento, a máquina estava abaixo do desempenho esperado, gerando “apenas” 1545 cv. A equipe da fabricante inglesa se dedicou a um estudo de melhora da máquina, enquanto o relógio se aproximava cada vez mais da hora limite.
Enquanto isso, Mitchell dava os toques finais no desenho do S.6, que, apesar de carregar grande semelhança com o modelo anterior, inseria grandes refinamentos em seu design.
Os principais eram a construção completamente metálica da aeronave, inclusive asas e superfícies de controle, totalmente em alumínio de alta-qualidade. Os radiadores foram construídos de maneira mais aerodinamicamente eficiente, abaixo da fuselagem e aplicando um criativo método de resfriamento de óleo, compartilhado com aquele utilizado pelo próprio motor.
Outras características menos imperceptíveis também mostravam diferenças entre o S.5 e o S.6, tais como o uso dos flutuadores da aeronave como local para armazenamento de combustível e o aumento em 1 metro na envergadura da aeronave.
No entanto, a grande estrela do S.6 era sem dúvida o seu motor, que finalmente chegou aos coeficientes de performance esperados no final de julho. Chegando a impressionantes 1850 cv com torque máximo, o motor Rolls poderia levar o S.6 a mais de 575 km/h, um recorde para a época.
Mesmo com os atrasos na entrega dos motores, dois S.6 estavam prontos para a disputa do Schneider Trophy de 1929, realizado em Calshot (Inglaterra). Alinhados pela equipe oficial da RAF (a High Speed Flight), essas aeronaves teriam como companheiras de equipe o solitário S.5, fazendo frente a um poderoso contingente de competidores italianos, representados por Fiat (C.29), Savoia-Marchetti (S.65) e Macchi (M.52 e M.67).

A tática britânica na corrida era a seguinte: deixar que o S.6 pilotado pelo tenente H.R.D Waghorn fosse a maior velocidade possível, enquanto o outro S.6, comandado pelo oficial de voo Richard Atcherley marcaria o junto às aeronaves italianas. O S.5 mais antigo, sob o comando do tenente David D’Arcy Grieg seguiria junto do pelotão, aproveitando abandonos para subir na classificação.
No caso da corrida, essas táticas foram desnecessárias: Cadringher (em um dos M.67) abandonou na segunda volta porque estava quase cego e sufocado pela fumaça do escapamento e Monti, no segundo M.67, também teve problemas de fumaça e foi forçado a fazer um pouso forçado quando água quase fervente começaram a vazar do motor.
Atcherley também teve problemas de visibilidade, o que fez com que o piloto perdesse o ponto de entrada da primeira curva. O S.6 cortou pela parte interna do pilone de marcação de volta, sendo desqualificado no processo.
Waghorn, por outro lado, superou os problemas e resistiu à pressão do Macchi restante, cruzando a linha de chegada em primeiro; Molin ficou em segundo lugar no M.52, e Greig, no S.5 (como já mencionado), veio em terceiro.
Mitchell, agora empenhado em se transformar no primeiro projetista a ganhar três Schneider Trophy consecutivos, não tardou a começar a desenho de seu hidroavião definitivo, que criaria as linhas básicas para todas as suas aeronaves a seguir.
No entanto, esse projeto enfrentou contratempos logo em sua fase inicial, devido a recusa do Ministério da Aeronáutica Britânico em financiar nova empreitada, usando como desculpa a delicada situação econômica mundial à época.
Depois de longas discussões, que envolveram certa chantagem pública para que a RAF patrocinasse mais uma vez a equipe de Mitchell, finalmente o dinheiro para financiar a iniciativa chegou às mãos da Supermarine, quase que com um ano de atraso.
Por conta do prazo curto para o desenvolvimento de uma nova aeronave, Mitchell não teve outra escolha que não atualizar o design original do S.6 para uma nova especificação, que viria a ser conhecida como S.6B.
Um comparativo exterior entre o S.6 originário e o S.6B não pode mostrar muita coisa ao observador menos atento, pois as mais significativas mudanças estavam por baixo da fuselagem da aeronave.
O primeiro ponto foi a melhora na refrigeração do avião, que havia se demonstrado o grande problema do S.6. Para isso, um conjunto extra de radiadores havia sido instalado nos flutuadores do S.6B, melhorando não só as temperaturas internas da aeronave, mas também, aperfeiçoando consideravelmente a performance do motor.
Por falar nele, o Rolls-Royce R continuava sendo o aparelho propulsivo escolhido para o S.6B. Com a melhora no arrefecimento e upgrades especiais da firma inglesa, tal motor chegava em 1931 a impressionantes 2350 cv.

Para o Schneider Trophy de 1931, a Supermarine inscreveria para a prova os dois novos S.6B, além de dois S.6 antigos atualizados para a especificação atualizada, sendo designados como S.6A.
Apesar da forte oposição esperada de equipes de França e Itália, todas elas se converteram em promessas vazias, visto que as construtoras de ambos os países tiveram problemas no desenvolvimento das aeronaves que pretendiam inscrever na corrida.
Portanto, o Schneider Trophy de 1931 já estava garantindo cair na mão da Supermarine e Mitchell mesmo antes que estes fizessem qualquer coisa.
Seria o Supermarine S.6B (número de cauda 1595) pilotado pelo tenente John Boothman que cruzaria a linha de chegada em primeiro lugar, garantindo o primeiro tricampeonato para uma equipe na história do troféu.
Assim, desde os dias como assistente na Supermarine até se tornar chefe de toda a operação da companhia, H.J. Mitchell demonstrou seu talento para o desenho de aeronaves de desempenho, que superaram em vários aspectos seus rivais.
Através da criação dos hidroaviões da classe S, Mitchell estava criando as bases para um de seus legados mais duradouros: o famoso Spitfire, que, anos depois, defenderia as cores de seu país, do mesmo modo que os classe S haviam feito, uma década antes.
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